As Invasões Bárbaras

Quando o visigodo Alarico saqueou Roma 66 anos antes da queda de seu último imperador, Romulus Augustus – nome composto ironicamente pelos do primeiro imperador e do fundador de Roma –, São Jerônimo lamentou “a extinção da luz mais resplandecente de toda a Terra”, quando “o Império perdeu sua cabeça” e “o mundo pereceu em uma cidade”. Um século antes, Lactâncio afirmava que o mundo pode acabar rápido, mas não há nada a temer enquanto a cidade de Roma permanecer intacta. Desde então, as invasões bárbaras viraram o arquétipo da brutalização da vida civilizada, o “Declínio e Queda do Império”, na fórmula proverbial de Gibbon. Porém, como ele descreveu, o Império só caiu 1.000 anos depois em Constantinopla. Das letras e letrados resgatados de lá a Itália concebeu o Renascimento, dando à luz a modernidade, onde o espírito de Roma inspiraria desde as artes clássicas às políticas republicanas, e hoje, como sempre, multidões de católicos são lideradas Urbi et Orbi pelo bispo da Cidade Eterna. Para os iluministas inebriados de classicismo a sua queda foi o mergulho na “Idade das Trevas”.

Mas não seria a Idade Média uma idade de luz? A engenhosidade arquitetônica de suas catedrais góticas é mais fulgurante que qualquer maquinação romana para copiar os gregos; seus cavaleiros se bateriam aos maiores centuriões; seus escolásticos inventaram a universidade; seus poetas o romance, e, do menor deles, surgiu talvez o mais são dos santos, Francisco. O Sacro Império Romano-Germânico, gestado numa noite de Natal pelo papa na basílica de São Pedro com a coroação do rei franco Carlos Magno, imperou mil anos até ser esmagado sob a bota do imperador francês Napoleão. As Letras latinas são belas, bárbaras, mas sua língua morta só frutifica barbarizada em pedaços nas nossas línguas românicas. Não é à República romana que a Inglaterra tributa seu parlamentarismo democrático e sua monarquia constitucional, mas às ligas tribais de celtas, anglos, saxões, bretões, normandos. A consciência e a arte germânicas são povoadas dessas bestas loiras que Nietzsche amava: Thor, Siegfried, Artur, Parsifal, Tristão, Isolda. Para Hegel, esse povo consumava a apoteose do Espírito Divino, inaugurando o império da verdade e da liberdade para o Universo. As igrejas protestantes, as nações e Estados europeus, nosso Novo Mundo americano – além dos eslavos, a Rússia, sua revolução, sua literatura, sua religião ortodoxa herdada do Império romano dos gregos em Bizâncio junto com o mito messiânico da Terceira Roma –, nada existiria como conhecemos não fossem os bárbaros.

Nem só legiões de Conans, vândalos e valquírias, nem cosmopolitas nórdicos, eram muitas vezes tribos civilizadas fugindo de tribos bestiais, ora abatendo Roma, ora se abrigando nela, ora combatendo seus invasores. O que conquistaram afinal? A morte de uma esplêndida civilização carcomida? Sua ressurreição pela barbárie? E o que revelam em nosso tempo de “invasões verticais dos bárbaros” e “tribos globais” e rebeliões das massas de imigrantes e refugiados – como o foram, aliás, os pais de Roma, bastardos selvagens como Rômulo e Remo e hordas asiáticas como os troianos de Eneias, o piedoso?

Convidados

Adrien Bayard: doutor em História Medieval pela Universidade de Sorbonne em Paris.

Marcelo Cândido: professor de História Medieval na Universidade de São Paulo

Renato Viana Boy: professor de História Antiga e Medieval na Universidade Federal da Fronteira do Sul.

Referências
  • The Early Slavs: Culture and Society in Early Medieval Eastern Europe de Paul Barford.
  • Myth of Nations. The Medieval Origins of Europe de Patrick Geary.
  • La Formation de l’Europe et les invasions barbares, vol. I : Des origines germaniques à l’avènement de Dioclétien de Émilienne Demougeot.
  • Die Goten de Wolfgang Giese.
  • The New Cambridge Medieval History, Vol. 1: c. 500 – c. 700 ed. por Paul Fouracre.
  • Barbarian Migrations and the Roman West, 376–568 de Guy Halsall.
  • Rome’s Gothic Wars: from the third century to Alaric de Michael Kulikowski
  • Barbarian Tides: The Migration Age and the Later Roman Empire de Walter A. Goffart.
  • Die Ursprünge Europas. Migration und Integration im frühen Mittelalter de Verena Postel.
  • Romans and Barbarians de Edward A. Thompson.
  • Les Invasions barbares de Pierre Riché et Philippe Le Maître.
  • Medieval Europe – A Short History de Judith M. Bennett e C. Warren Hollister

Apresentação: Marcelo Consentino
Produção técnica: Afrânio Cruz
Ilustração: A Batalha de Ludovisi. Sarcófago romano (c. 250-260 d.C.)

22 de outubro de 2018