A Bhagavad Gita

Há quem diga que o Mahabharata é o maior poema do mundo. Em certo sentido isso é indisputável: é o mais longo. O conflito épico entre os clãs irmãos Pandava e Kurava é sete vezes maior que a Ilíada e a Odisseia juntas. E no clímax de décadas de confronto, no campo da batalha decisiva, surge aquela que muitos consideram a mais preciosa joia da Índia para o mundo: a Canção de Deus, Bhagavad Gita. Em certo sentido isso também é indisputável. É a obra mais traduzida, comentada e amada da literatura religiosa indiana. Para Wilhelm von Humboldt “é o mais belo, talvez o único verdadeiro canto filosófico em qualquer língua, possivelmente a coisa mais profunda e elevada que o mundo tem a mostrar”.

À frente do exército de seus irmãos, em frente ao exército de seus primos, o príncipe Arjuna lança por terra seu arco e flechas e colapsa sob o peso de um dilema: conquistar um reino sacrificando seus familiares, ou sacrificar seu dever cívico renunciando ao mundo. “Você tem de lutar!”, diz seu companheiro Krishna. Como um guru, ele instrui Arjuna sobre a natureza da alma, as dimensões da realidade e os caminhos da libertação, culminando na epifania mística em que se revela como o Deus supremo.

A Bhagavad Gita é um esforço extraordinário para harmonizar tradições diversas e por vezes discordantes: os valores bramânicos e o código dos guerreiros; o panteísmo antigo e a religiosidade teísta; a ascese e a ação. Não à toa a Gita já foi chamada o “Novo Testamento hindu” e Krishna, o “Cristo indiano”. O Deus da Bhagavad Gita é certamente próximo a Yahweh, criador do Mundo e senhor da História. O poema é rico em paradoxos éticos e metafísicos que refletem as ambivalências da vida, mas, como no Evangelho, a mensagem final é cristalina: “Refugie-se em mim, eu o libertarei de todos os males, não tema”, diz Deus. “Aquele que medita em mim e me imita, eu elevo sobre o oceano da morte”.

Mas como imitar um Deus que está em todas as coisas e além delas; que é criativo e destrutivo; uma pessoa e o Ser absoluto? Em busca de respostas, os gurus e filósofos moldaram indelevelmente a espiritualidade hindu. No século XX, o poema foi invocado por nacionalistas indianos para conclamar ao combate armado pela independência. Mas foi talvez Ghandi, o grande artífice da independência pela não-violência, quem compreendeu o seu verdadeiro chamado: a batalha interior pelo triunfo sobre o egoísmo.

CONVIDADOS

Dilip Loundo: Professor de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de Uma introdução ao hinduísmo.

Lúcio Valera: doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de Introdução ao Sânscrito.

Rubens Turci: Doutor em Estudos Religiosos pela McMaster University e autor de Shraddhà in the Bhagavad-Gità: A Magnetic Needle Pointing Toward Brahmanirvana.

REFERÊNCIAS

  • História das Crenças e das Ideias Religiosas, de Mircea Eliade.
  • The Encyclopedia of World Religions, org. R.S. Ellwood e G.D. Alles.
  • Britannica Encyclopedia of World Religions, org. W. Doniger.
  • Religions of the World. A comprehensive Encyclopedia of Beliefs and Practices, org. J.G. Melton e M. Baumann.
  • Encyclopedia of Religion, org. Lindsay Jones.
  • A History of Indian Philosophy, de Surendranath Dasgupta.
  • A survey of Hinduism, de Klaus K. Klostermaier.
  • An introduction to Hinduism, de Gavin Flood.
  • Hinduism. A Very Short Introduction, de Kim Knott.
  • Encyclopedia of Hinduism, de C.A. Jones e J.D. Ryan.
  • A History of Indian Literature, de T. Goudriaan e S. Gupta.
  • A History of Sanskrit Literature, ed. S.N. Dasgupta.
  • A History of Indian Literature, de Jan Gonda.
  • History of Indian Literature, de M. Winternitz.
  • History of Classical Sanskrit Literature, de M. Krishnamachariar.

Apresentação: Marcelo Consentino

Produção técnica: Compasso Coolab.

Ilustração: Arjuna e seu arqueiro Krishna à frente dos Pandavas contra os Kuravas liderados por Karna na guerra de Kurukshetra. Índia, c. 1820.